Mansões Plenárias para os Juízes do Supremo
O governo do presidente João Lourenço disponibilizará mais de 16 mil milhões de kwanzas para a aquisição de residências para os juízes conselheiros do Tribunal Supremo (TS). Este valor é 13 vezes superior à soma global atribuída, em 2022, aos 164 municípios do país (1,3 mil milhões de kwanzas) para o combate à fome e à pobreza, no âmbito da gestão autónoma local. O dinheiro para as casas dos juízes é superior a todo o orçamento de 2022 do próprio tribunal, fixado em 12,7 mil milhões de kwanzas.
A distribuição de casas para os juízes levanta o velho problema, desde a independência, da dignificação dos titulares de cargos públicos por via de esquemas ditados ao mais alto nível. Tudo começa pela remuneração da função pública. Esta reforça os poderes arbitrários de quem controla e distribui o património do Estado, bem como promove um elevado grau de corruptibilidade e transforma a função pública numa kitanda onde a prestação de serviços públicos é pela lei da melhor oferta e do compadrio.
É por via desta economia corporativista – “fascista” como a caracteriza Yuri Quixina – que os juízes conselheiros do tribunal, que deveriam ser a representação máxima da independência do poder judicial, acabam na condição de mendigos do poder executivo. Como nota uma alta entidade do TS, “há mais de dois anos, o Tribunal Supremo tem andado atrás do chefe do executivo, o Presidente da República, para resolver o problema das casas para os seus juízes”.
Do ponto vista legal, conforme notam alguns altos funcionários do TS, os juízes jubilados (que são dez) também deveriam ter acesso aos mesmos benefícios: “Estes juízes também deveriam ter recebido as viaturas de função e de residência, mas nunca tiveram esse benefício.”
Os juízes conselheiros auferem um salário mensal de 2,1 milhões de kwanzas (equivalente a 4,3 mil dólares) e deveriam ter a possibilidade de aceder a créditos bancários.
As reivindicações dos magistrados deste tribunal superior cingiram-se apenas à comparação com a celeridade com que aparentemente o governo tratou das residências para os colegas de outra instituição superior, o Tribunal Constitucional, no Condomínio Boavida.
Nos últimos meses, de acordo com fontes do Maka Angola, vários juízes reclamaram também contra a obrigação, alegadamente instituída pelo governo, de os beneficiários adquirirem as suas residências exclusivamente no Condomínio Boavida, pertencente ao empresário Tomasz Dowbor: “Alguns juízes preferem usar o valor de 550 milhões de kwanzas (1,1 milhões de dólares) atribuídos a cada um para comprarem casas de acordo com as suas escolhas pessoais.”
Desse modo, por Deliberação n.º 05/22 do Plenário do Tribunal Supremo de 23 de Setembro de 2022, os juízes decidiram o seguinte:
“Orientar a comissão encarregue de tratar do assunto relativo a aquisição das residências para os venerandos juízes conselheiros, a fim de providenciar uma visita guiada com todos os juízes conselheiros no Condomínio Boa Vida, e em conjunto encontrarem soluções sobre a viabilidade da aquisição das residências e/ou encontrem alternativas em outros condomínios, com preços equivalentes, devendo para o efeito, promover um encontro com o Director Nacional do Património do Estado do Ministério das Finanças a fim de acompanhar a referida visita.”
Crédito para os juízes inferiores
A 9 de Setembro de 2022, o empresário Tomasz Dowbor serviu de cicerone, no Condomínio Boavida, a dezenas de magistrados que foram “conferir os detalhes do projecto em um ambiente tranquilo e harmonioso”.
No passado dia 20, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) convocou todos os presidentes dos tribunais de Relação e de Comarca a comparecerem, no dia 22, no Condomínio Boavida ou a participarem numa visita virtual por Zoom. Trata-se do processo de aquisição de residências no referido condomínio com financiamento do Banco de Poupança e Crédito (BPC) para os magistrados dos tribunais inferiores.
Para já, o Ofício n.º 3542/035/GS/CSMJ/2022, assinado pelo secretário executivo do CSMJ, o juiz Manuel Victor Assuilo, levanta três questões fundamentais de direito sobre a transparência e a segurança.
Promiscuidade
Primeiro, pensava-se que estes assuntos domésticos não caberiam nas competências dos magistrados do TS e do CSMJ. No TS, a comissão para tratar das casas é liderada pelos juízes conselheiros Daniel Modesto e Teresa Buta. Por exemplo, sabe-se que o empresário Tomasz Dowbor tem processos judiciais em recurso no Tribunal da Relação os quais poderão, eventualmente, subir ao Tribunal Supremo. No ano passado, a Polícia Nacional deteve-o por agressão a uma cidadã residente no Condomínio Boavida, quando tentava expulsá-la de casa, e por abuso de poder. Na ocasião, como observou o Novo Jornal, o então comandante provincial da Polícia Nacional justificou a detenção porque “ninguém está autorizado a fazer justiça por mãos próprias, independente da sua posição social ou política”.
Perante isto, é caso para perguntar: se o processo contra Tomasz Dowbor chegar ao Supremo, como o irão tratar os dois juízes da comissão do TS que agora negoceia casas com o empresário?
Por sua vez, temos a reunião de negócios entre o CSMJ, os juízes presidentes dos tribunais da Relação e de Comarca, o BPC e Tomasz Dowbor no Condomínio Boavida. Como é que o Tribunal da Relação pode decidir isentamente sobre o seu caso, quando o empresário tem todos os juízes alistados para viverem no seu condomínio, além dos presidentes dos tribunais Supremo e Constitucional que já lá vivem? É uma promiscuidade indescritível.
Arbitrariedade e clientelismo
Em segundo lugar, a decisão do chefe do governo segundo a qual só aos juízes dos tribunais Supremo e Constitucional devem ser oferecidas casas e viaturas de luxo banaliza e corrompe essas instituições. Para muitos juízes, o sonho de chegar ao Supremo prende-se mais com o desejo de obter uma casa gratuita num condomínio, e não com a sua realização ou capacidade profissional.
Para muitos angolanos, a memória dos anos 80 ainda está fresca. Nessa altura, não faltaram cidadãos a decidirem frequentar a universidade para obterem o cartão mensal de abastecimento alimentar correspondente ao dos técnicos superiores – o qual incluía queijo e uma garrafa de whiskey – e não para cultivarem o conhecimento.
Este sistema clientelista foi definido pela estudiosa francesa Christine Messiant como a substituição dos direitos políticos e sociais dos cidadãos por redes patrimonialistas que providenciam os únicos acessos reais aos recursos e à protecção do Estado. É o sistema em que a arbitrariedade elimina a autoridade legítima e apenas exige obediência.
É de lembrar que Angola suportou vários anos seguidos de recessão, complementados por uma forte intervenção restritiva do Fundo Monetário Internacional (FMI). Um dos temas-chave da recente campanha eleitoral foi a fome e a miséria sofridas por muitos concidadãos.
Segurança
Finalmente, do ponto de vista da segurança, é simplesmente perigoso encurralar os juízes dos tribunais Supremo, Constitucional, de Relação e Comarca em um único condomínio.
Conclusão
O juiz conselheiro Daniel Modesto, ao elaborar a decisão de não concessão de liberdade condicional a Augusto Tomás, condenou a cultura da corrupção e os excessos e esbanjamentos. Considerou que tais crimes mereciam, a bem da paz social, punição severa. Ei-lo agora a co-liderar um processo que em tudo indicia excessos e esbanjamento do erário público.
A mesma paz social e tranquilidade pública implicam o mesmo comportamento dos juízes. Não tem sentido exigir à sociedade um comportamento probo e austero enquanto os guardiões da lei discutem as sumptuosas residências onde ambicionam viver.
Na realidade, duvidamos da legalidade de toda esta actividade imobiliária. Se atentarmos ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, em nenhum lado se menciona o direito a uma casa, muito menos a uma mansão palaciana. Refere o artigo 33.º do Estatuto que os magistrados judiciais têm direito a um subsídio mensal de renda de casa que cubra esse custo a 100% quando não ocupem uma residência oficial do Estado. Portanto, ou ocupam uma casa do Estado (e não propriedade oferecida pelo Estado) – e nada diz que tem de ser um palacete ou mansão milionária –, ou recebem um subsídio para pagar renda.
Os benefícios dos juízes do Tribunal Supremo estão previstos na lei (artigo 34.º do Estatuto dos Magistrados). Além da casa de função ou subsídio de renda, incluem:
– passaporte diplomático e serviço protocolar;
– viatura do Estado para apoio às necessidades de casa (só uma);
– dois motoristas;
– um cozinheiro;
– uma lavadeira;
– um empregado doméstico.
Facilmente se vê que são benefícios mais do que suficientes e que não incluem o direito a uma moradia luxuosa própria. Repete-se: ou vivem numa casa de função pertença do Estado, ou têm um subsídio de renda. Mais do que isso é claramente um desequilíbrio constitucional.
O que está aqui em causa não são, ainda, factos, mas sim aparências. O que está em causa, e muito seriamente, é a aparência de uma justiça imparcial, descomprometida, isenta e que não deva favores a ninguém. Em vez dessa imagem, de momento aquilo que se vê é um sistema judicial à procura de benesses, ajoelhado perante a riqueza e com preocupações demasiado terrenas. Pode ser tudo legal, mas não abona a favor da credibilidade da justiça. Vale a pena perguntar: porventura os juízes conselheiros do Supremo têm dormido em tendas ou debaixo da ponte? E só os detentores de cargos públicos é que têm direito a residências condignas?
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